O luto e a infância

Por Camila Fusco
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Imagem: acervo da colunista
Imagem: acervo da colunista

Minha mãe morreu na quarentena. AVC. Contar para os meus filhos foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Mas sobrevivi, sobrevivemos. E estamos caminhando aos poucos.

Minha mãe era daquelas avós presentes – e muito! -, não era avó de porta-retrato. Durante a maior parte da minha vida como executiva viajante pela América Latina, era ela o meu porto seguro para deixar as crianças no contraturno da escola, em apoio também ao meu marido que sempre foi um paizão e assumia todas as responsabilidades com as crianças quando voltava do trabalho.

Fazia com prazer e seu papel ia bem além de buscar na escola, levar para a natação ou para o futebol. Estimulava a curiosidade dos meus pequenos com músicas, brincadeiras, muita conversa! Foi ela que começou o desfralde, que viu o primeiro dente cair. Ela era meus olhos e ouvidos em comportamentos e traços de personalidade. Ajudava a formar o conceito de autonomia nos meus pequenos e via no Pedro e na Isabela uma chance de reviver a minha infância que ela, como executiva também em tempo integral, não teve muito tempo para aproveitar como gostaria.

Não vou dizer que vivíamos nas mil maravilhas porque não era. Na realidade, nós brigávamos bastante especialmente pela diferença de personalidade, eu no meu mundo mais liberto-criativo-flexível e ela no regrado-centrado-organizado. Mas éramos uma boa dupla. E esse apoio aconteceu diariamente de 2012 a março de 2020, quando a quarentena a colocou em casa por tempo indeterminado.

Foi um baque imenso para as crianças, mas as videochamadas ajudavam a estreitar a distância: na comemoração dos aniversários dos dois, no almoço virtual de Páscoa, nos jogos diários. Pelo Google e pelo Zoom, também visitavam juntos os museus do mundo, paixão do Pedro.

O AVC hemorrágico veio em maio, um dia após o Dia das Mães que, excepcionalmente, passamos separadas. Teve correria, reanimação em casa, muita luta e 27 dias no hospital. Nesse período, ela se recuperou do coma, saiu da UTI e sorria a cada vez que ouvia os áudios enviados pelas crianças.

A essa altura, Isabela e Pedro – 7 e 8 anos – sabiam exatamente o que estava acontecendo. Nunca escondi a condição da vó, nem mesmo nos momentos mais difíceis, tristes e de incerteza. Era um exercício hercúleo diário, confesso, tendo que escutar, sanar as dúvidas, responder com a verdade às perguntas sobre “a vovó vai voltar?” e ainda lidar com a minha dor e preocupação.

A rotina, que nesse momento já estava de cabeça para baixo com as aulas online, exercícios presenciais e dupla jornada do currículo bilíngue e do brasileiro, mudou um pouco para melhor com a chegada do vô que veio morar com a gente. Tudo caminhava para uma recuperação plena mesmo em tempos de Covid, não havia seqüelas e dias depois ela já estava no quarto. As crianças se animaram, mandavam mais fotos, áudios, desenhos para o hospital. E as enfermeiras decoravam o quarto com eles. Chamadas de vídeo e brincadeiras conjuntas pelo vídeo ajudavam nos ânimos dos dois lados. A preocupação deu lugar ao alívio e a esperança de que eles estariam juntos novamente.

Amores, preciso falar com vocês

A montanha-russa emocional voltou de repente. E deu lugar ao baque definitivo. No dia que seria a alta hospitalar, ela passou mal. Teve uma parada cardíaca causada por uma embolia e o fim de semana que seria de comemoração da alta da vó, virou um vazio imenso.

Nós já sabíamos que as chances eram pequenas e tivemos que comunicar sobre a piora. Isso principalmente porque existia a expectativa de que eles pudessem encontrar com ela ainda no fim de semana. As crianças sentem e percebem o entorno de uma forma ímpar. E, claro, não tinha como dizer que estava tudo bem se nos nossos próprios olhos estavam o retrato da dor, da preocupação e do cansaço extremo da noite virada no hospital.

Conversamos sobre o estado de saúde, sobre a mudança repentina de planos. Falamos da força e da garra que a vó sempre teve na vida, e sobre como, mais do que nunca, precisávamos estar juntos e vibrando por ela. Choramos, nos abraçamos, rezamos. Eu não tinha como falar que ia ficar tudo bem. Falar isso seria mentir para eles num momento tão delicado e, dentro do que acredito, a confiança deles em mim precisa ser mantida por mais difícil que seja a situação.

A vovó Marli partiu na madrugada de segunda-feira, dia 8 de junho. Com a ligação do hospital, meus sogros vieram para casa ficar com as crianças que ainda dormiam. Eu, meu marido e meu pai, destroçados, corremos para lá. Pedi para meus sogros não comentarem nada, era eu quem precisava estar com eles naquele momento. Só disseram que nós três estávamos no hospital.

Já era início da tarde quando voltei para casa. Pedi para que os dois subissem comigo para o quarto porque eu queria falar com eles. Eu acredito que eles já soubessem, sentiam, estavam cabisbaixos e tristes. A conversa começou a partir de uma pergunta do Pedro. “Mamãe, e a vovó?”. Simplesmente contei.

Eu não me lembro as palavras ao certo, lembro que me sentei no meio deles na cama, falei que a condição dela tinha piorado muito naquela noite e que ela não tinha resistido. Que ela continuaria viva em cada um nós com tudo o que nós aprendemos com ela. Que poderíamos falar com ela sempre que quiséssemos em pensamento. E que sentiria muita falta dela, que ela tinha sido uma mulher incrível e que tinha ajudado a fazer quem somos hoje. Chorei muito. Não tinha nem motivo nem maneira de esconder o que eu sentia naquele momento. Eles me abraçaram.

Acredito que eles não tenham entendido ao certo a dimensão ou o significado da ausência naquele momento específico. Eles não caíram num choro desmedido, não gritaram, pareciam anestesiados e perdidos por alguns momentos.

Com o surto do Covid ainda em alta, não fizemos velório. A despedida foi muito rápida, com pouca gente, já no local da cremação e eu não os levei. Não sei se fiz certo, mas naquele momento só quis evitar que ficasse algum trauma sobre a “materialização da morte”, semelhante ao que eu passei no enterro da minha bisavó, aos 9 anos, ao ver corpo, caixão, véu, sentir a pele gelada, tudo sem contexto. Levei aquela imagem por anos na vida.

Verdade, escuta e respeito

O que eu entendi depois daquela segunda-feira da partida da vó é que o luto de cada um só estava começando. E que cada uma das crianças passaria por ele à sua maneira nos meses seguintes.

Segui as orientações da brilhante Cris Rayes – psicóloga e psicoterapeuta com quem eu já tinha interagido em outras oportunidades e quem me apoiou nesse processo de acolhida e vivência do luto, meu e das crianças. Entre tantas dicas, descobri a importância de compartilhar com eles o que eu estava sentindo sem esconder, sem mentir.

Isso me fez reforçar os laços de confiança que eles têm em mim, ajudou a mostrar, na prática, que nem todos os momentos serão felizes – justamente porque isso não é a vida real. Ao demonstrar os meus sentimentos, eles não só veem que eu sou uma pessoa de carne e osso, com altos e baixos emocionais, mas também materializam a vida como um apanhado de momentos bons e outros nem tanto.

Também precisei aprender a desenvolver a escuta e acolhê-los de formas diferentes em suas necessidades. O Pedro se fechou. Durante meses não falou da vó, do que sentia, da falta que ela fazia, nada. Era como se houvesse um gigante elefante na sala, que ele via, mas tentava ignorar. Respeitei. Nos momentos em que ele dava sinais – mais explícitos ou implícitos – eu aproveitava a brecha e perguntava se ele queria falar sobre o que estava sentindo, sem pressionar, só oferecendo os meus ouvidos e o meu colo.

Funcionou bem essa técnica com ele. Ele começou a se abrir aos poucos e sabia que, se trouxesse o assunto à tona, seria ouvido, acolhido e também teria espaço para chorar sem medo. Com o tempo, passou a contar como se comunicava com a vovó, conversava com ela todas as noites mentalmente. Disse que isso fazia bem para ele. Tem dias que ele está mais ou menos cabisbaixo, sei que ausência dela para ele é uma dor silenciosa. E que estamos aos poucos tentando lidar com ela.

A Isabela foi exatamente o oposto, falante desde o início. Sem medo ou vergonha de dizer o que sentia e encarando a falta da vó de frente. Às vezes, “do nada”, dizia para mim que a vovó estava ajudando na lição de matemática, de português, como sempre fazia. Tirando qualquer conotação mística, espiritual ou religiosa da discussão, deixo ela falar.  Normalmente pergunto se o papo foi bom, como ela se sente. E ela fala tranquilamente, às vezes mais objetiva, às vezes mais emotiva. Da mesma forma, não são poucas as vezes que a vovó surge na conversa como uma doce lembrança sinestésica: no cheiro do xampu, na cor de uma blusa parecida com a dela, na música que ela gostava e cantavam juntas.

Do meu lado, estou aprendendo a ser mãe sem mãe. E, assim como eles, estou entendendo os meus limites, as minhas necessidades emocionais. Às vezes mais calada ou mais falante, às vezes ainda precisando chorar sem reprimir o que sinto para quem quer que esteja comigo. Às vezes virando a noite trabalhando para preencher um vazio que sei que não vai sair nunca daqui. É uma jornada que acredito ainda estar longe de estar amadurecida. Mas, como falei anteriormente, estamos caminhando aos poucos. Estamos nos entendendo. E respeitando o ritmo de cada um.

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