Como é viver abaixo de zero

Por Fernanda Salla
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abaixo de zero
Imagem: acervo da colunista

O nome desta coluna não é à toa. Prince George, onde eu e minha família moramos, figurou entre as dez cidades mais geladas do mundo em 2020, ano em que bateu recorde de temperatura negativa, chegando a -44 graus Celsius (segundo o site WX-Now). Para se ter uma ideia, quando os termômetros marcam -27 graus já existe um risco real de congelamento da pele (os chamados frostbites). É um frio, literalmente, congelante. Para piorar, brinco que o inverno aqui dura oito meses — de outubro a maio. Mais de quatro anos depois de ter chegado nessa cidade da província de Columbia Britânica, no Canadá, colecionei diversas curiosidades da vida por aqui, mas também aprendi a aproveitar o que o mundo abaixo de zero tem a oferecer.

Rotina inusitada

Muitas pessoas me perguntam como é conviver com um frio tão severo. Para mim, a partir de determinada temperatura negativa, não é a sensação térmica que muda. A diferença é que passamos a sentir dores em algumas partes do corpo que nem imaginávamos, como nas orelhas e nos dedos das mãos e dos pés. Por isso, aprendemos logo que é preciso ter roupas adequadas. Não adianta colocar três ou quatro camadas de calças e blusas — como eu fazia no começo — e achar que vai segurar o frio. Existem luvas, gorros, botas e casacos próprios para serem usados a -30 graus Celsius. Essas vestimentas não são baratas, mas duram muito, e sempre é possível encontrar opções em conta nas lojas de segunda mão e em vendas de garagem. Além disso, como em todos os lugares existe calefação, é melhor colocar um bom casaco que possa ser retirado em ambientes fechados do que usar várias sobreposições de roupas e morrer de calor ao entrar em um café ou em uma loja.

Por falar em calefação, essa é uma conta que sai cara no inverno, pois as casas ficam com ela ligada 24 horas por dia. E se você pensa que todo mundo coloca o aquecimento lá em cima, que nada! Como cada grau Celsius gera um gasto grande de energia, a maioria das pessoas mantém as residências em uma temperatura entre 18 e 19 graus de dia e entre 16 e 17 graus de noite. Acabamos nos acostumando com a vida mais fresca, e haja cobertinhas espalhadas pela sala para dar um calorzinho a mais.

Outra curiosidade da vida abaixo de zero é que a rotina de inverno inclui algumas tarefas inusitadas, como plugar o carro na tomada todas as noites para que seja possível dar a partida nele pela manhã, acionar o botão à distância — de dentro de casa — para ligá-lo 15 minutos antes e deixá-lo quentinho para quando entrarmos nele, e raspar o gelo que se forma no para-brisa. Também é preciso tirar a neve da entrada de casa e da garagem com uma pá e jogar sal no chão para derreter o que fica de água congelada. Caso o carteiro considere o caminho perigoso, com risco de ele escorregar, os correios podem se negar a entregar a correspondência.

O fato de ser um país extremamente seguro, principalmente em uma cidade pequena, também possibilita que as pessoas deixem os carros destrancados e ligados na rua ou em estacionamentos comerciais quando vão para algum lugar fazer uma compra rápida. Assim, o veículo se mantém aquecido. Quando se tem criança, isso é especialmente importante, pois os casacos grossos não podem ser usados na cadeirinha do carro — já que diminuem a eficácia dela em caso de acidente —, então assim ninguém passa frio. Outra medida importante é trocar os pneus por modelos de inverno, que derrapam menos sobre a neve.

Crianças adaptadas ao frio

Já na maternidade, depois de dar à luz minha primeira filha, percebi que o conceito de frio é um pouco relativo para os canadenses quando se trata de crianças. Eu havia levado no enxoval da maternidade alguns gorrinhos, que sempre aparecem na cabeça dos recém-nascidos, ainda nos braços da mãe, em qualquer foto de parto. Ouvi de muitos que os bebês perdem calor pela cabecinha, por isso o ítem era obrigatório. Aqui no Canadá, não só eles ignoram a necessidade do gorro como deixam os nenês apenas de fraldinha o tempo todo. Não existe aquela lista de roupas para levar para o hospital, apenas o conjunto que a criança irá usar quando tiver alta. Aliás, há uma expressão dita aqui para as mães de primeira viagem que alerta para não superaquecer o bebê: “Don’t cook the egg” (algo como “Não cozinhe o ovo”, em português). Isso porque um recém-nascido com excesso de calor pode desidratar facilmente e desmaiar sem que percebamos.

Quando matriculei a Clarice no daycare (a creche daqui), as educadoras me falaram que sempre reservavam um período do dia para que as crianças brincassem ao ar livre, no parquinho, e a turminha só não saía quando os termômetros registravam temperaturas menores do que -20 graus Celsius. Ou seja, nada de não sair para evitar a friagem, como nos aconselham as mães e avós no Brasil. É comum ver crianças de roupas frescas nas ruas, mesmo a temperaturas que, em nosso país, seriam do alto inverno. Mesmo quando chove, a garotada sai para brincar e pular nas poças d’água com galochas e calças impermeáveis. O segredo é se adaptar ao clima do dia.

Diversão ao ar livre

Dá para perceber que o frio e a neve não são desculpas para deixar de fazer coisas fora de casa. Então, este ano, com a Clarice (3 anos) e a Gabriela (quase 1 ano e meio) já mais crescidinhas, estamos curtindo o quintal e o privilégio de viver em uma cidade com poucos habitantes e muitos espaços naturais, que podem ser aproveitados mesmo na pandemia. Aqui, há rinques de patinação que são feitos em ginásios e ao ar livre para todos usarem. São cobrados preços simbólicos de um ou dois dólares. Existem diversos lagos ao redor da cidade, em que é possível limpar determinadas áreas para esquiar, ou fazer um buraro no gelo para pescar (o chamado ice fishing). A paisagem é incrível! Comprei, por três dólares, um par de patins de segunda mão e já pude usar em diversas ocasiões. Sempre andamos de trenó pelas trilhas e parques, e Clarice adora puxar a Gabriela. Também já fizemos snowshoeing, que é uma caminhada na neve com um acessório especial para não afundar os pés.

Construir bonecos de neve com as crianças é uma diversão garantida. Assim como desmontar uma caixa vazia de fraldas e usá-la para escorregar de bumbum nos morros perto de onde moramos. No jardim, acabamos de instalar um espacinho para fazermos fogueira e derreter marshmallows com as meninas. Há algumas semanas, uma amiga canadense deu a ideia de fazermos enfeites de árvores com folhas e galhos secos colhidos do chão. É só sair com a garotada para coletar esses materiais, posicionar em pratos de plástico ou de alumínio descartáveis, colocar pedaços de barbante formando uma alça, encher de água e deixar do lado de fora para congelar. Depois, penduramos nas árvores do quintal. Ficam parecendo grandes ornamentos de Natal. Como a temperatura é quase sempre negativa no inverno, eles duram bastante.

Este ano, quero me arriscar nos esquis, algo que nunca fiz. Existem alguns locais para essa prática na cidade — parte deles é pago e outros não. Eu sempre tive muita vontade de aprender, mas como logo que cheguei no Canadá já engravidei da Clarice, minha médica sabiamente disse que não era a melhor hora para me aventurar. Um ano e meio depois, já esperava a Gabriela, e tive de passar mais uma temporada sem grandes experimentos nessa área. No último Natal, a Clarice ganhou um par de esquis dos avós. Espero que até o fim deste inverno, que já está com tudo por aqui, eu e ela possamos aprender juntas mais essa diversão que a vida abaixo de zero pode nos proporcionar. Está vendo? O frio até que não é tão assustador assim.

 

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