É possível amar e detestar ser mãe?

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Imagem: acervo da colunista
Imagem: acervo da colunista

“Oi, ! Lembro de quando você estava grávida de sua primeira filha e me disse que não sabia se iria gostar de ser mãe. Pelo visto você gostou, né?”

Um amigo, com quem eu não falava há algum tempo, me mandou essa mensagem logo após eu postar uma foto de minha segunda filha, Gabriela, nas redes sociais. Li e reli o texto sem conseguir responder a ele de imediato. Minha vontade não era dizer “sim, é maravilhoso!”, mas escrever: “a verdade é que adoro e, ao mesmo tempo, não gosto de ser mãe”.

Esse pensamento me fez travar. Como uma coisa dessas poderia passar pela minha cabeça? Gerar vidas é algo quase mágico, não trocaria minhas filhas por nada, é emocionante vê-las crescer e aprender. Eu deveria estar me sentindo plena, não é mesmo? Porém, a realidade não é bem assim. Claro, a maternidade tem todos os aspectos bons que listei acima, mas também tem um lado B que caminha quase nas sombras do outro. E, neste momento de pandemia, em que a convivência com as crianças se tornou mais intensa, foram diversos os pequenos desabafos, quase em tom de segredo, feitos a mim por outras mães em isolamento. Pude me identificar imediatamente com os relatos, pois muito do que elas estão passando eu também experiencio na vida fora do Brasil.

Eu, por exemplo, odeio não poder ser dona absoluta da minha rotina. É uma droga não ter tempo livre, precisar tomar decisões que se baseiem não apenas no que eu quero, não conseguir cuidar de mim – mesmo vendo minha autoestima pedindo socorro. É penoso estar num dia ruim e ter de engolir o choro, esconder o mau humor e ficar disponível para as meninas. Detesto as birras e quando demoram para dormir, tirando ainda mais o tempo que me resta. Não gosto nada de sentir que meu cérebro enferrujou e que já sofro um pouco para manter uma “conversa adulta” como diz uma expressão em inglês (adult conversation). É frustrante ter meu lado profissional pausado por período indeterminado.

Essa parte da qual não se fala muito, que temos vergonha de sentir, que é reprimida pela sociedade, é mais comum do que se imagina. Discutir essa questão se torna fundamental para a própria saúde mental das mães, que precisam saber que não estão sozinhas, que não são pessoas ruins ao sentirem-se assim, que a maternidade não é fácil e não é só amor. É uma eterna função para a qual não nascemos preparadas. Sim, é possível e normal não gostar de ser mãe sempre, mas o dia a dia pode e deve ser mais leve.

Isolamento e carga materna

Quando larguei a carreira no Brasil para vir para o Canadá, também foi o momento que achei que era hora de começar minha família. Finalmente, casada há 6 anos com o Fabricio, decidimos fazer o que os desafios profissionais, como mudanças de cargos e de empresa, tinham me impedido até então. Ao engravidar já no segundo mês, vi minha vida mudar radicalmente: de workaholic para mãe em período integral – a não ser por reportagens e edições de texto como freelancer. A entrega foi grande e inesperada, pois não tive tempo de me inserir no mercado de trabalho no novo país, de criar conexões por aqui e estabelecer uma rotina para além da maternidade. O isolamento despertou seus lados A e B de uma só vez.

No Canadá não há creche – o chamado daycare – para todos. Além disso a maioria absoluta aceita crianças somente a partir de um ano e meio de idade e a lista de espera é imensa. Eu só pude colocar a Clarice quando ela estava com um ano e dez meses. Eu já estava grávida da Gabriela, que nasceu quatro meses depois e hoje está prestes a fazer um ano. Serão, ao menos, mais seis meses com a bebê em casa em período integral. A cidade em que moro é gelada, chegando a temperaturas no inverno de -30 graus Celsius ou pior. A neve dura quase a metade do ano. Como podem imaginar, são dias e dias trancados no quentinho de casa com as crianças e sem tempo para retomar os projetos profissionais e individuais.

Vejo que, com a pandemia e a necessidade de ficar recolhido com os filhos em período integral, um grande fardo da parentalidade recaiu pesado sobre as mulheres. Para além da carga mental e da rotina já existentes, elas assumiram também o papel de mediadoras nos estudos, a responsabilidade por criarem atividades lúdicas e educativas, por variarem o cardápio nas refeições, por entretê-los ou distraí-los quando atrapalham o trabalho. A cobrança continua a mesma, e surge a sensação de improdutividade e fracasso tanto no âmbito profissional quanto pessoal. Nisso, muitas abriram mão da carreira para tentar dar conta da nova vida em casa.

Segundo dados das organizações Think Eva e Think Olga, as mulheres representam cinco das oito milhões de pessoas que deixaram o mercado de trabalho durante os primeiros quatro meses de pandemia. O trabalho com cuidados domésticos ainda é majoritariamente feminino, o que significa menos tempo para que elas desempenhem funções remuneradas e exerçam sua individualidade. Exigir que mães nessas situações amem a maternidade o tempo todo é mais do que romantizar esse papel, é também negligenciar aspectos importantes relacionados à equidade de gênero e aos direitos das mulheres que são urgentes de serem debatidos.

Honestidade e equilíbrio

Como diz uma amiga querida, grande parte das coisas que vivemos tem esses dois lados: o bom e o ruim ao mesmo tempo. A realidade não é perfeita. Reconhecer para nós mesmas e para os outros a dualidade de sentimentos que envolve a maternidade abre caminho para que possamos, assim, enxergar maneiras de equilibrar a balança da parentalidade e lutar por uma sociedade menos desigual entre homens e mulheres. É preciso coragem para enfrentar esse caminho, e a beleza está exatamente nisso. A verdade não é menos linda do que a versão romântica, porém viver a realidade compartilhando a parte ruim pode ajudar e muito a sobrevivermos a ela de forma mais saudável, leve e equilibrada.

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