Na época de Natal é inevitável fazermos um balanço do que passou, ainda mais em um ano tão intenso como este de pandemia. Já comentei em textos anteriores que a quarentena forçada não alterou muito a minha rotina desde que mudei para o Canadá, há cerca de quatro anos. Nunca contei com ajuda remunerada aqui ou rede de apoio próxima, e será o quarto ano em que o Natal ocorrerá sem grandes encontros para ceias fartas e parentes confraternizando. Apesar disso, foi inevitável refletir sobre tudo o que aconteceu desde que deixei o Brasil, em 2016.
O Canadá me trouxe muito mais do que as minhas duas filhas, nascidas aqui. Além de ter ganhado qualidade de vida, determinados elementos da cultura canadense me proporcionaram uma transformação pessoal importante. O contato com a cultura local me fez encarar a vida de outra forma, como as relações com o trabalho, a comunidade e o consumo. Claro, a vida não é somente maple syrup e poutine, mas a atmosfera natalina despertou uma sensação de gratidão e a vontade de listar esses aprendizados, que gostaria de levar comigo para onde eu for.
Relativizar o peso do trabalho
Onde eu moro, vigora a famosa premissa de que “trabalha-se para viver e não se vive para trabalhar”. Os canadenses sabem dividir bem o dia entre a profissão, a família, o lazer e o esporte. Quando chega o fim do expediente, por volta de 5h ou 6h da tarde, eles realmente largam suas canetas e saem para curtir o restante do tempo. Aqui em Prince George há centros esportivos, rinques de patinação, parques e piscinas públicos que ficam cheios — bom, ao menos ficavam antes da pandemia. Os pais aproveitam a companhia dos filhos, fazem atividades ao ar livre e jantam cedo. Acredito que esse modo de vida seja resultado de alguns fatores associados, entre eles a menor desigualdade social, já que é possível viver dignamente e ter poder de compra com o salário mínimo. Os serviços são bem remunerados e pagos por hora. Além disso, a garantia de direitos básicos, como saúde e educação gratuitos, contribui para que os trabalhadores tenham mais segurança e estejam menos sujeitos a explorações — não digo que isso não exista, mas ocorre menos. Mesmo que você siga a carreira que ama e trabalhe muito porque gosta, ainda há um senso comum de que a profissão é somente uma caixinha dentre tantas outras igualmente importantes que compõem a vida.
Fiquei lembrando de tantas madrugadas que passei trabalhando e o quanto isso consumia não somente meu tempo, mas minha energia e minha saúde. Sim, me considero uma pessoa workaholic, mas não era esse o problema. Era comum eu deixar de fazer coisas por causa do trabalho simplesmente porque existe essa cultura no Brasil de que precisamos dar mais sempre. A insegurança do mercado e a alta competitividade nos faz ter a sensação de que estamos sempre em dívida com o contratante, e ficamos com medo de sermos mandados embora. Além das horas incessantes de labuta, eu acumulava crises de ansiedade e noites de insônia. Todas as vezes que fui visitar meu país, teve alguém que não conseguiu nem dez minutos para nos vermos em um café ou almoço rápido por estar preso no serviço. Infelizmente, neste momento de isolamento social, recebo relatos de brasileiros dizendo que essa balança está ainda mais desequilibrada.
Adquirir produtos de segunda mão
Aqui na minha cidade, consumir produtos usados não é um tabu nem algo que só faz quem não tem dinheiro para pagar por um novo. Tudo se aproveita. No Brasil, mesmo havendo diversas plataformas de vendas de usados, ainda há uma cultura de se comprar na loja, até pela facilidade de pagar em prestações no cartão de crédito a perder de vista — algo que não existe aqui. Além disso, os preços de segunda mão não são assim tão atraentes e as peças precisam estar em excelente estado. Lembro que, quando coloquei diversos itens da minha casa brasileira para vender antes de mudar para o Canadá, meus pais se incomodaram ao ver eu anunciando a “mercadoria” pela internet para amigos e familiares. Eu mesma tinha vergonha de cobrar por certas coisas e acabei dando embora, como utensílios de cozinha, roupas e acessórios. Já aqui, mobiliei a casa toda com móveis de segunda mão. Também adquiri equipamentos de esporte na neve, como patins e snowshoes, tudo usado. Não queríamos gastar muito, já que não sabíamos quanto tempo iríamos ficar no Canadá e precisávamos nos manter com as economias que trouxemos.
Na minha cidade, as vendas de garagem são extremamente comuns e existe até um mapa semanal no jornal para listá-las durante a Primavera e o Outono, que é quando elas mais acontecem. Vende-se absolutamente de tudo, desde quinquilharias quebradas até antiguidades e produtos quase novos por preços bem baixos. No nosso primeiro mês na cidade, passávamos todos os fins de semana de casa em casa angariando coisas. Também há uma legião de lojas de itens doados, como a do Exército da Salvação, em que é possível garimpar raridades. Existe até um evento que ocorre algumas vezes por ano chamado Junk in the Truck, em que pessoas estacionam seus carros e caminhonetes cheios de móveis e objetos em um local público e abrem os porta-malas para que as pessoas possam fuçar. Por ser uma cidade pequena, o marketplace do Facebook funciona bem. Eu já me desfiz de diversas coisas, como peças de bebê que as meninas já não usavam mais, objetos que comprei e não foram úteis e móveis que substituímos com o tempo em casa. É só anunciar e combinar a retirada. Tenho uma vitrola e uma penteadeira antigas que amo. Mas, das coisas que adquiri, tenho um xodó especial por um cavalinho de madeira pelo qual paguei dois dólares e restaurei inteiro junto com meu marido. A Clarice, hoje com três anos, brincou com ele desde cedo e faz isso até hoje, assim como a Gabriela, que acaba de completar um ano de idade.
Retribuir para a comunidade
No Canadá, fazer trabalho voluntário é mais do que um diferencial, é praticamente uma obrigação moral. O candidato a uma vaga de emprego com um currículo profissional que não conte com experiências voluntárias não é sequer selecionado para entrevistas. A ideia de que é preciso participar da comunidade local para fazer dela um lugar melhor é geral. Por isso, quase a totalidade da população em minha cidade faz parte de alguma entidade ou se voluntaria em eventos como forma de contribuir. Posições voltadas a voluntários existem tanto em organizações sociais — como o próprio Exército da Salvação, citado anteriormente — quanto em empresas regulares. Você pode se candidatar a vagas assim na rádio local, por exemplo, em uma escola, no centro de zoonoses, para fazer parte de uma liga de resgate de pessoas perdidas, nos eventos comunitários, entre outras oportunidades. Enfim, lugares para atuar é que não faltam.
Essa ideia de “give it back” para a comunidade também está no estilo de vida das pessoas. Uns cuidam dos outros. É comum haver organizações de vizinhos para prezarem pela segurança uns dos outros, usarem produtos com embalagens retornáveis, reciclar tudo, fazer compoteira e repassar itens que já não usam mais para amigos e familiares. A cadeirinha de bebê do carro, o cadeirão de alimentação, além de muitas roupinhas e brinquedos nós ganhamos de amigos e conhecidos aqui. Isso nem é considerado caridade, é a ideia de sustentabilidade mesmo, de que não vale a pena descartar algo que ainda tem muita vida útil pela frente. Doar tempo, objetos e até deixar o cabelo crescer para cortar e dar para quem precisa é tão comum que fez com que eu me sentisse a pessoa mais egoísta do mundo por não ter isso tudo em minha rotina antes.
Aproveitar o ar livre
Claro, quem vive a maior parte do ano em temperaturas negativas, não pode usar o frio como desculpa para não sair de casa. Mas a verdade é que os canadenses sabem mesmo aproveitar a vida ao ar livre. As garagens em Prince George raramente são usadas para guardar os carros, mas sim itens esportivos para serem praticados na natureza. No verão, é comum as famílias reservarem espaços em parques naturais para passar os meses de férias acampando em contato com a natureza. Nessa época do ano, as ruas se enchem de trailers, motorhomes e até pequenas embarcações estacionadas nas portas das casas, mesmo daquelas mais modestas — afinal, é possível comprar tudo de segunda mão a preços acessíveis. No inverno, os patins, esquis e outros materiais de esporte de neve são tirados dos armários e usados em algum dos diversos locais destinados a essas práticas.
Existem rinques de patinação ao ar livre, morros para esquiar e trilhas em áreas preservadas. Seja embaixo de sol, chuva ou neve, sempre vemos pessoas correndo nas ruas — com equipamentos adequados, claro —, andando com seus cachorros ou brincando com as crianças, que crescem aprendendo que o ambiente natural é uma fonte de diversão preciosa. O fato de haver abundante opção de lazer ao ar livre e gratuito — ou a preços baixos — coopera para esse uso dos espaços públicos, mas não é somente isso. Percebo que os canadenses têm uma cultura de se relacionar com a natureza de uma maneira menos exploratória e mais respeitosa e educativa.
Valorizar o local
Não consigo nem contar quantas feirinhas de artesanato acontecem todos os anos aqui na cidade. São inúmeras! Vende-se de tudo: geleias, cerâmica, pinturas, fotografias, produtos de tricô ou crochê, enfeites de Natal, sabonetes artesanais, esculturas em madeira, roupas de bebê, brinquedos feitos à mão, joias, entre outros diversos produtos. Valorizar os artigos manufaturados e presentear pessoas com eles é extremamente comum. As feiras locais ficam lotadas e existe um verdadeiro circuito delas com mercadorias de todas as faixas de preços. Eu mesma já participei de uma delas vendendo joias em aquarela feitas por mim. Foi uma experiência fantástica! Sei que existem muitos eventos do tipo no Brasil — e cada vez mais —, mas sinto que aqui o valor está em quem faz e não somente no objeto em si. O saber por trás, a habilidade, o tempo gasto, os detalhes, tudo isso é levado em conta e paga-se bem por isso.
E isso também está diretamente relacionado a enaltecer os profissionais locais, sejam eles artistas, comerciantes, donos de restaurantes ou produtores rurais. Existe uma consciência de que o dinheiro deve ir para os pequenos negócios, as famílias da região, aqueles que geram riquezas locais, e não para as grandes corporações. Claro, o Canadá ainda é um país altamente capitalista, com suas enormes redes e franquias, mas há uma consciência social que permeia as decisões de consumo, sejam elas relacionadas à escolha do quê comprar, de onde comprar e de como utilizar e descartar esse produto adquirido no decorrer da vida.
Por fim, acredito que todos esses aprendizados que listei acima estejam interligados. No fundo, eles têm a ver com a ideia de sustentabilidade. De valorizar as pessoas mais do que os produtos, de ampliar a vida útil dos objetos reutilizando-os, de educar as crianças para cuidar do meio ambiente, respeitá-lo e retribuir a comunidade com trabalho social. Esses são valores que, sem dúvidas, quero passar para minhas filhas. Eu espero continuar aprendendo por aqui e também poder contribuir para construir um mundo melhor a minha volta, com consciência social e ambiental.